domingo, 4 de agosto de 2013

Entrevista do Professor Benito Schmidt a Revista de História da Biblioteca Nacional

Entrevista com o professor da UFRGS, Benito Bisso Schmidt, publicada na Edição de Julho/2013, da Revista de História da Biblioteca Nacional.


     A entrevista foi concedida na casa de Benito, em Porto Alegre. Ele comentou a agenda "quente" da ANPUH (ele era presidente da entidade até o XXVII Simpósio, em Natal), os desafios de escrever uma biografia, o sistema de ava-liação das universidades por produtividade e o pro-jeto de lei que regulamenta a profissão de historiador. Imperdível!


Revista de História – Por que optou pela biografia, como método?
Benito Bisso – Foi absolutamente ao acaso. Eu era bolsista de iniciação científica com a professora Silvia Petersen, pesquisadora da história do movimento operário. Queria fazer o meu trabalho de conclusão de curso em alguma coisa nessa área, então ela me deu uma caixa de documentos sobre um operário chamado Antônio Guedes Coutinho e disse: “Eu sempre tive curiosidade por este personagem e não sei o que fazer com esta documentação. Por que você não faz uma biografia dele?”. Justamente naquele momento, início dos anos 1990, estavam chegando ao Brasil as primeiras discussões sobre o que se chamou de “retorno da biografia”. Um retorno entre aspas.

RH – Por quê?
BB – Porque é um tipo de biografia completamente renovada, diferente da biografia heroica que se fazia no século XIX, dos personagens como modelos a serem seguidos, quase uma hagiografia. Agora estavam chegando novas discussões, um texto importante do Giovani Levi sobre a micro-história [“Usos da biografia”], o livro do Ginzburg sobre o moleiro Menocchio [O queijo e os vermes]. Uma ideia própria da micro-história é perceber que, mesmo em sistemas normativos muito fechados, muito opressivos, sempre existe uma margem de atuação do indivíduo. Envolve também o interesse por personagens obscuros. Outra vertente importante foi francesa, de crítica ao estruturalismo e de recuperação do sujeito na História, das ações individuais. O que se chamou de “nova História”: a biografia de personagens consagrados, mas vistos por um outro olhar. Nessa linha, eu citaria os trabalhos do Le Goff e o livro do Georges Duby [Guilherme o Marechal ou O melhor cavaleiro do mundo].

RH – O que revelou o seu primeiro personagem, Antônio Guedes Coutinho?
BB – Ele é português de nascimento, vem para o Brasil na segunda metade do século XIX, acaba liderando movimentos importantes dos operários no Rio Grande do Sul e se tornando um teórico socialista. Lançou um livrinho chamado Catecismo Socialista, que tem a forma de perguntas e respostas, com um olhar que hoje parece muito ingênuo. Mas é considerada a primeira obra teórica do socialismo no Brasil. Obviamente eu não quis fazer uma biografia heroica do Coutinho, mas tentar, a partir dele e com ele, pensar questões importantes da época. Sobretudo o que era ser socialista naquele momento. Por exemplo: ele era socialista e era espírita também, kardecista. Isso me permitiu toda uma reflexão sobre a questão do cientificismo. O espiritismo se vê como uma teoria científica e tem muitas coisas em comum com o socialismo, como a perspectiva evolucionista.

RH – Seus biografados seguintes também eram socialistas?
BB – No meu doutorado, escolhi dois personagens muito diferentes entre si, mas que eram amigos. Um é o Francisco Xavier da Costa, um afrodescendente que ficou órfão aos 12 anos e começou a trabalhar como litógrafo. Este setor da litografia, em Porto Alegre, era dominado pelos imigrantes alemães. Então ele aprende a falar alemão, começa a ter contato com as obras de teoria socialista e vai ser um grande líder do movimento operário. O outro é o Carlos Cavaco, um boêmio, um literato que se engaja na questão do socialismo muito mais por uma aproximação estética do que por iniciação de classe. Foi também uma liderança importante. Eu queria mostrar como ser socialista podia significar muitas coisas.

RH – Entre os dois trabalhos, sua reflexão sobre a biografia mudou?
BB – No mestrado, eu estava muito preocupado com a representatividade: até que ponto o meu personagem era representativo de um grupo social maior? Depois, em função de uma série de leituras e contatos, rediscuti esta questão. Muito mais importante é mostrar como esses personagens são singulares. O historiador tem muita dificuldade de lidar com o que é singular. Parece que, para justificar o estudo de um objeto singular, a gente tem que dizer que ele é representativo de algo mais amplo. Não, o singular também é importante na História. Depois eu fiz a biografia de uma jornalista do Sul, que vive praticamente todo o século XX, de 1906 a 1984. Chama-se Gilda Marin e é lembrada hoje como uma personagem dohigh society porto-alegrense, uma figura exuberante, boêmia, bebia todas, fumava, era meio como a “louquinha da cidade”, teve amantes conhecidos e tal. Todo mundo conta a mesma história, com pequenas variações. Mas eu quis mostrar por que se consolidou essa memória sobre ela. E o que essa memória oculta. Foi esquecido que ela era uma intelectual superimportante em Porto Alegre nos anos 50. Foi uma militante política, comunista primeiro, sofrendo a discriminação também dos comunistas por ser uma mulher mais liberal nos costumes – os comunistas eram muito conservadores – e por ser uma mulher da alta sociedade. Depois aderiu ao PTB, foi muito próxima da Neuza Brizola. Parece que para uma mulher ter se projetado na esfera pública em Porto Alegre foi necessário consolidar uma memória dela como “a louca” ou como “a exótica”. A questão da memória se tornou cada vez mais importante no meu trabalho.

RH – E qual é o próximo passo?
BB – Estou em um projeto já faz alguns anos, espero que o resultado seja lançado logo. Pela primeira vez eu biografo um personagem vivo. E um vivo muito vivo, alguém que tem formação acadêmica e foi militante da luta armada. Chama-se Flávio Koutzii. Está sendo muito interessante para mim, porque é alguém que sabe do que eu estou falando, conhece os autores que estou usando. Inclusive me indica: “Olha, saiu um livro interessante sobre isso”, conhece Foucault, conhece Goffman, toda essa coisa das prisões. É um intelectual. 

RH – Por que o escolheu?
BB – Todo mundo falava dele como uma figura importante dos anos 60. Eu estava com vontade de trabalhar com o período da ditadura porque se tem uma imagem muito compacta do que ficou conhecido como a Geração 68. A gente tem a impressão de que todos os estudantes foram rebeldes. Se todo mundo que diz que estava na passeata dos 100 mil realmente estivesse, seria a passeata do 1 milhão. Muitas vezes, no estudo desse período, a gente substitui a História pela memória. É até compreensível: como são memórias traumáticas, de pessoas pelas quais nós temos alguma simpatia política, parece que as falas, os testemunhos substituem a História. Isso também aconteceu em outros lugares, como no caso dos campos de concentração. Temos que dar a esses testemunhos o mesmo tipo de tratamento que damos ao testemunho lá do Tucídides. Eu estava a fim de lidar com as questões éticas envolvidas. Na verdade, os meus trabalhos são “pretextos”, entre aspas, para lidar com questões teóricas que me interessam. Por exemplo, ao longo das nossas várias entrevistas, o testemunho dele se modifica, à medida que vai me conhecendo mais. No início era uma história muito linear, chapada, sem contradições. Agora estou tendo acesso a coisas muito dolorosas da experiência dele, o que coloca um problema ético: ao mesmo tempo vou respeitar a singularidade desse testemunho, tudo o que ele implica de sofrimento, mas vou continuar sendo historiador, tentando entender como essas memórias foram construídas.

RH – Não é uma contradição aparente lidar com movimentos coletivistas através de biografias particulares?
BB – Isso é muito interessante. O Flávio, por exemplo, me conta muito na primeira pessoa do plural, “nós”, ele diz, “a minha geração”. E nas nossas narrativas manobramos esses grupos ou categorias de maneira muito homogênea, considerando-os como sujeitos, “os socialistas fizeram tal coisa”, “a Geração 68 se opôs à ditadura”. Eu estou lendo isso pela via do singular. Talvez uma das grandes funções da biografia seja mostrar que dentro desses rótulos nós temos uma diversidade muito grande de experiências. Por exemplo, eu perguntei para uma amiga do Flávio, que organizou um dos comitês pela libertação dele: “Como é que você tomou contato com esse movimento de direitos humanos?”. E ela: “Por causa da minha depiladora, uma coreana”. Na biografia a gente reencontra a complexidade, a liberdade dos sujeitos, o acaso. É uma perspectiva menos determinista. Hoje nós sabemos qual foi o futuro daquele passado. Só que os agentes tinham vários futuros possíveis diante de si. Esse é um problema da biografia: como a gente já conhece o final da história desses personagens, tende a conduzir toda a narrativa para aquele sentido.

RH – Dá uma sensação de que o sujeito pertenceu àquilo quase por natureza.
BB – É o que Bourdieu chama de ilusão biográfica. Isso se manifesta quando a gente usa aquela expressão “desde pequeno”, ou “sempre foi assim”. Eu li uma biografia da Clarice Lispector que dizia “Ela era uma criança muito criativa”, “Ela ia muito bem em português”. Eu também ia muito bem em português. Eu era uma criança criativa e nem por isso virei Clarice Lispector. Parece que a pessoa já nasce predeterminada para aquele futuro. O legal da biografia é recuperar a incerteza, a imprevisibilidade. Sem desconsiderar, obviamente, um contexto que limita, por um lado, e abre possibilidades, por outro.

RH – Como anda a formação acadêmica em História?
BB – Acho perigosa a especialização precoce. A pessoa começa a trabalhar em um tema desde o segundo ano da graduação e aquilo já vira o tema do mestrado, do doutorado, sem nenhuma visão maior a respeito do campo historiográfico. Na graduação a gente tem que se formar historiador. A especialização vem depois. É um problema até para o mercado de trabalho: dificilmente você vai ser professor de teatro grego. Você vai ser, no mínimo, professor de História Antiga. Às vezes temos 15 doutores fazendo concurso e eles não conseguem preparar uma aula um pouco mais abrangente. É como estudar um tema específico da Primeira República e não conseguir dar uma aula sobre a política oligárquica daquele período, ou sobre o Modernismo.

RH – Como vê o sistema de avaliação das universidades por produtividade?
BB – Sei que muitos colegas reclamam do produtivismo acadêmico. Eu não tenho essa visão. Somos professores públicos, pagos com verbas públicas, e temos, sim, a obrigação de produzir. E não é uma produção exagerada. Nós temos, em geral, dedicação exclusiva nos cursos, damos poucas aulas, temos tempo para a pesquisa. É impossível alguém ficar dois anos, que é o tempo de avaliação de um curso, e não produzir um artigo. O que essa pessoa está fazendo?

RH – A produção acadêmica está mais acessível?
BB – Em geral, a gente produz para poucos. O que se exige do trabalho na academia é uma produção altamente qualificada, complexa, que não é para o grande público. É um trabalho entre pares para o desenvolvimento da ciência. Até brinco com os meus alunos: parece que ser acadêmico virou uma coisa negativa. Criticam: “O seu livro é muito acadêmico”. O meu livro foi produzido na academia, eu sou um acadêmico, então é isso que eu quero. Ninguém vai questionar um físico assim: “O seu artigo está muito científico”. Mas claro, os historiadores estão cada vez mais preocupados em atingir outros públicos, com artigos para revistas, livros de divulgação, fazendo curadoria de exposições. O campo está bem diversificado.

RH – Isso orientou a escolha do tema do próximo encontro da Anpuh?
BB – “Conhecimento histórico e diálogo social”, a discussão é esta. A atuação do historiador é extremamente positiva para vários campos. No campo do patrimônio é bem importante, tanto o material quando o imaterial. Há historiadores trabalhando com turismo. Colegas de Santa Catarina, especialistas na área da escravidão, estão pensando em rotas de uma Florianópolis negra. Um colega do Mato Grosso faz assessoria para a Globo quando tem assuntos indígenas em novelas. Vamos ter uma mesa sobre a questão do conhecimento histórico nos meios de comunicação. Um colega de Santa Catarina tem um programa de rádio sobre História. O professor Carlos Fico tem um blog. Há esta questão das novas tecnologias de informação. Toda história é uma história contemporânea. Se houvesse uma mudança de regime político, uma ditadura – que Deus nos livre – não se precisaria mudar os livros de física, de química, de biologia, de português. Os de história sim, porque o conhecimento histórico é muito ligado às lutas políticas de seu tempo.

RH – Qual é o papel da Anpuh nesse processo?
BB – A Anpuh nasce, há mais de 50 anos, como uma associação de professores universitários de História. A sigla vem daí. Nos anos 80, passou a ser uma associação nacional de História. Era uma abertura, sobretudo, para os professores dos outros níveis de ensino. Isso foi muito polêmico porque infelizmente ainda temos um forte ranço elitista. Inclusive se criou uma associação dissidente. Hoje a Anpuh incorpora professores dos diversos níveis de ensino, pós-graduandos, pesquisadores de espaços não convencionais. Algumas características da Anpuh vêm se modificando. Por muito tempo os presidentes sempre foram do Rio ou de São Paulo. Desde a gestão do meu antecessor, o professor Durval Muniz de Albuquerque Júnior, do Rio Grande do Norte, tivemos diretorias mais representativas do Brasil como um todo. Existem mais de 60 cursos de pós-graduação em História no país, com programas muito vivos e uma produção rica, cursos de graduação diferenciados, curso de graduação indígena, ligações diretas com o exterior. A Anpuh tinha que expressar essa realidade. Também foi importante o envolvimento com as questões do ensino básico.

RH – Quais são os desafios nesse campo?
BB – Ainda existe um certo olhar de desdém para as questões do ensino de História, principalmente por parte dos acadêmicos, que acham que ensinar é quase um dom natural. Temos reflexões muito densas sobre o que é aprender História, sobre o que significa uma criança de 6, 7 anos pensar em tempo, pensar em espaço, pensar em relações sociais. O estudo de História no ensino básico não é só uma versão reduzida do que a gente aprende na universidade. No ensino básico não estamos formando pequenos historiadores, mas cidadãos que a gente espera que tenham um olhar também histórico sobre o mundo.

RH – Há uma crescente politização da Anpuh?
BB – Não no sentido da política partidária, mas no sentido do historiador se envolver com os temas quentes da contemporaneidade, participar do debate público. Tivemos uma postura louvável, por exemplo, ao nos contrapormos àVeja, que disse que Hobsbawn era um idiota. Assinamos um termo de cooperação com a Comissão da Verdade para fornecer informações, indicar arquivos e mesmo temas para o debate da comissão. Eles sabem um pouco do que aconteceu no Sul e no Sudeste, mas houve massacres no Amazonas, em Roraima. Houve a dizimação de etnias indígenas inteiras em função dos grandes projetos, como a Transamazônica. Isso pode mudar o que se pensa como as vítimas da ditadura. Na França, chamam sempre os historiadores: para o debate sobre a laicidade do Estado, sobre a diversidade, sobre o terrorismo. Aqui os historiadores ainda são um pouco tímidos em participar desses debates. Tanto que existe uma certa pecha sobre o historiador “midiático”, como se ele não fosse sério. Temos que aprender a dar o nosso pitaco.

RH – Qual a importância da regulamentação da profissão do historiador?
BB – É uma reivindicação muito antiga, e a Anpuh está lutando por ela. Houve muito mal-entendido: “Ah, então o professor tal, que é um grande especialista, não vai mais poder escrever sobre História?”. As pessoas não leram o projeto. Isso seria contra a liberdade de expressão. Qualquer pessoa vai poder continuar escrevendo sobre História, desde um Evaldo Cabral de Mello, que tem outra formação, até o amador da cidadezinha que quer escrever sobre a história do bairro, da cidade, da família. O projeto só busca assegurar que nos espaços onde houver ensino formal de História, e onde houver pesquisa científica em História, tem que ter a presença do historiador. Sabemos da quantidade de professores de História que também tem que dar aula de geografia, de filosofia, de sociologia, e vice-versa: geógrafos que dão aula de História, e tal. Queremos que o professor de História do ensino básico seja formado em História. E que existam profissionais de História onde se faz pesquisas de História. Por exemplo: um museu histórico tem que contar em seus quadros, necessariamente, com um museólogo, que é uma profissão reconhecida. Mas ele não precisa contratar historiadores. Um arquivo histórico tem que ter arquivista, mas não precisa ter historiador. Nem se pode abrir concurso para historiador. O grande mérito desse projeto é incluir o historiador em discussões fundamentais, tanto para o nosso ofício quanto para a constituição de uma memória mais qualificada das instituições, dos grupos, da nação.


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