terça-feira, 23 de novembro de 2010

A diversidade na união - Observatório da Imprensa 23/11/2010

A diversidade na união


Por Elenita Malta Pereira e Marcelo Degrazia, no Observatório da Imprensa, em 23/11/2010




Em 12 de novembro, a Folha de S.Paulo publicou, em sua seção "Tendências/Debates", artigo da professora de direito Janaína Conceição Paschoal, intitulado "Em defesa de Mayara", a estudante de Direito que recomendou a quem quisesse fazer um favor a São Paulo afogar um nordestino por dia. A respeito da afirmação extremamente preconceituosa – como se fosse possível alguma defesa – a professora argumenta que a culpa não foi de Mayara, e sim de Lula, que promoveria uma política separatista no Brasil. Declarações do presidente, ao dividir o país em "pobres" e "ricos", motivariam manifestações como as da estudante paulista.

O artigo de Janaína afirma também que Serra teria sido rejeitado por ser paulista, o que, além de não se constituir em argumento comprovável, falha na medida em que o tucano foi recusado pela maioria dos eleitores, e não apenas por nordestinos. Considerando apenas a economia e os índices de desenvolvimento humano, o Nordeste, historicamente, foi visto como a região mais atrasada do país, vitimada pela seca; isso é verdade, mas sobretudo por oligarquias de "coronéis" que monopolizavam terras, capitais, mídias, votos, poder. Esse modelo de (sub)desenvolvimento gerou concentração de riqueza, de um lado, e profundas mazelas sociais de outro. Os recursos federais aí investidos em políticas assistencialistas por governos passados foram, em boa parte, sistematicamente desviados por esquemas de corrupção que favoreciam "donos de poder" locais e novas forças políticas eventualmente emergidas. A região evoluiu bastante, não resta dúvida, mas ainda apresenta grandes carências sociais e distorções econômicas. Num contexto como esse, qualquer governo que oferecesse benefícios concretos e de maneira direta acabaria recolhendo duras críticas por parte das elites mais atrasadas, juntamente com os votos do povo desassistido.

Se houve rejeição, foi ao que o candidato tucano representava enquanto ameaça a esse aspecto da distribuição da renda nacional, e não ao fato de ser paulista. Houve, sim, uma nítida escolha: continuar o projeto iniciado em 2003. As urnas, quando ouvidas, falaram na linguagem dos eleitores a mesma linguagem sem sotaques das palavras-votos, de Norte a Sul do Brasil.

A política separatista

A professora, num trecho de seu artigo na Folha, se refere ao ataque de Mayara contra os nordestinos como sendo o resultado de uma suposta política separatista incentivada por Brasília. Somos assim tão cegos, a ponto de não vermos que um dos objetivos do atual governo era o de desmembrar o Brasil? Lula conseguiria somente com a força de sua política social e com o metralhar dos votos, o que Sabinadas, Cabanagens e Farroupilhas apenas sonharam com a força de seus fuzis? Não foi o governo Lula quem criou os distanciamentos sugeridos pela professora. Foram as próprias realidades brasileiras, estabelecidas por processos históricos de exclusão social, que geraram as situações apontadas pelo presidente ao longo de seu governo.

Contra as desigualdades, entre acertos e erros, foram continuadas, aprofundadas e desenvolvidas diversas políticas sociais, na tentativa de, se não eliminá-las, ao menos reduzi-las. Tais políticas, muitas vezes taxadas de assistencialistas, representam o mínimo necessário para aplacar as enormes carências das populações e as grandes diferenças econômicas entre as regiões do país. Se compararmos tais políticas com os programas sociais de muitas nações europeias, verificaremos nosso atraso em termos de amparo aos menos favorecidos. Já a própria Constituição de 1988, em seus princípios fundamentais, reconheceu as profundas diferenças muito antes de serem apontadas pelo Presidente, tanto que anota como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, no Art. 3º, inciso III: "Erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais" (grifo nosso). O assistencialismo apoia-se, entre outros conceitos, na noção de que não dá para esperar o bolo crescer e só então reparti-lo, como queria Delfim Neto no regime civil-militar.

O país da diversidade

Quanto à unidade brasileira, a professora afirma que o Brasil sempre foi "um exemplo de união", a começar pela língua, falada por todos, apesar das dimensões continentais do país. No entanto, muitos de nós não conseguem ver que a grande contribuição do Brasil para a humanidade é justamente o seu multiculturalismo, expresso na sua diversidade étnica, religiosa, linguística, folclórica, artística, que expressam, por sua vez, matrizes culturais muito diversas. É impossível reduzir a nação às suas características regionais, ainda que reunidos seus aspectos mais representativos. Por isso, toda tentativa de agrupar os elementos afirmativos dessa impossível imagem nacional sempre têm falhado, quando não repetem estereótipos vazios e limitadores que dizem mais de uns do que de outros.

Qualquer tentativa de fixar essa riqueza de matizes numa imagem será sempre tarefa vã e empobrecedora. Não é derrotismo, é aceitação do outro, do vário, do múltiplo. Porque o que essas definições têm em comum, tirando o aspecto reducionista, é a produção de símbolos "à nossa imagem e semelhança", mas de apenas alguns e em certos locais de privilégios. Mestiços, somos vários e multifários, irredutíveis às unidades fundamentais e instrumentais da nacionalidade, como a língua, a moeda, o território, a ordem jurídica, o governo, os símbolos nacionais. Nesse contexto (de diversidade na união), as nossas agudas diferenças, manifestadas nas violências urbana e rural, são provocadas, sobretudo, pelas desigualdades econômicas, políticas e sociais.

E quanto à Mayara, não vimos em que a professora, que também é advogada, apoiaria a eventual defesa (mencionada no título do artigo) de sua possível cliente porque não há nenhum nexo causal entre a infeliz manifestação da estudante e uma suposta política separatista do governo Lula – argumentos aqui contestados – para justificar o seu ataque raivoso contra nós, 190 milhões de nordestinos de todos os quadrantes. Ao tentar defender o indefensável, a professora apela para a lógica da inversão e acaba culpando as próprias vítimas – no caso, a população nordestina – pelos problemas do país. Nossa conclusão é que Janaína Conceição Paschoal aproveitou o caso Mayara para, em seu artigo na Folha, além de requentar o indigesto Prato Frio (PF) da não memorável campanha eleitoral, passar o seu lamento pela derrota do candidato tucano.


Elenita Malta Pereira é Historiadora
 
Marcelo Degrazia é Escritor

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