Excelente texto do escritor Marcelo Degrazia sobre os dilemas do projeto de lei do novo Código de Mineração brasileiro.
Por Marcelo Degrazia (Concerto de Letras)
O que muda com a nova lei
de mineração, que Congresso analisará, em 2013 ou 2014. Por que movimentos
sociais precisam exigir debate público.
O
projeto do novo marco regulatório da atividade mineradora, o PL 5.807/2013, tem provocado críticas de
vários setores da sociedade civil. Em especial por seu caráter antidemocrático
(elaborado em gabinete fechado) e por fazer tabula rasa dos enormes impactos
socioambientais causados pelas empresas. Aplainado pela frente parlamentar da
mineração – a exemplo do Código Florestal de 2012, desfigurado pela bancada
ruralista –, tem mais de trezentos e setenta emendas e deve ser apresentado à
Câmara Federal nesta quarta-feira, 6 de novembro, pelo relator Leandro Quintão
(PMDB-MG). Por suas falhas, pelas polêmicas que provoca e pela falta de
discussão, sua votação deve ficar para o ano que vem.
O PL
desagrada às gigantes do setor, que veem nele a porta de entrada à maior
participação do Estado no negócio. E também às pequenas empresas de geologia e
pesquisa mineral, que identificam no projeto reserva de mercado às gigantes,
com sua provável expulsão do jogo. Já advogados apontam insegurança jurídica,
pois o novo marco deixa o detalhamento de algumas matérias para decreto
presidencial e regulamentação da agência fiscalizadora do setor, a ser criada.
A seu
favor pode-se apontar a inovação no regime de concessões, o fato de que o
Estado passa a ter participação no produto da lavra e que as concessões deixam
de serad eternum.
“DNA” do Código
O PL
prevê como regimes de concessão: a licitação, a chamada pública e a
autorização. O primeiro caso será aplicado a áreas consideradas estratégicas e
de grande valor econômico, segundo definição do Conselho Nacional de Política
Mineral (CNPM) – outro órgão a ser criado. Fora isso, a concessão será
precedida de chamada pública, por iniciativa da agência reguladora ou de
interessado. A autorização, regime de concessão mais simples e rápido (que
revoga o Regime de Licenciamento criado pela lei 6.567/1978), será aplicada
para minérios de uso na construção civil: argila para tijolos, telhas e afins,
rochas ornamentais, água mineral e minérios utilizados como corretivos de solo
na agricultura.
Nas
licitações, o código inova nos critérios de julgamento para a concessão. A
exemplo do leilão de Libra, a empresa deverá oferecer um bônus de assinatura; e
também um bônus de descoberta, depois de apurado o potencial econômico do
bloco. Outro critério será o programa exploratório mínimo, um conjunto de
atividades a ser realizadas obrigatoriamente pelo concessionário na fase de
pesquisa.
Um dos
critérios decisivos, que poderá ser considerado de maneira isolada ou combinada
com um ou vários dos demais, é a participação no resultado da lavra. Hoje, a
empresa concessionária tem direito a 100% da propriedade do produto da lavra.
Aqui há uma mudança substancial em favor do Estado, que terá assegurada uma
participação mínima no produto, sem prejuízo da carga tributária e de taxas.
Aqui, seria desejável que os percentuais de participação do Estado já fossem
definidos pelo código ou sua regulamentação, já que os governos mudam, a
orientação das licitações sofrem ingerências políticas e não é de se duvidar,
com base no histórico das concessões, a ocorrência de arreglo prévio entre
empresas.
O prazo
dos contratos não será mais ad
eternum ou até o esgotamento da mina, mas terá vigência de
quarenta anos, prorrogável por períodos sucessivos de até vinte anos, desde que
as obrigações legais e contratuais sejam atendidas pelo concessionário. No ato
da prorrogação, a critério do poder público, poderão ser incluídos nos
contratos de concessão novas condições e obrigações. Vale ressaltar aqui que os
novos contratos terão uma cláusula específica para os critérios de devolução
das áreas e fechamento das minas, em que estará incluída a obrigação de
recuperação ambiental das áreas afetadas pela atividade, “conforme solução
técnica exigida pelo órgão ambiental licenciador”.
Sanções
As
hipóteses de incidência de sanções serão reguladas pela nova Agência Nacional
de Mineração (ANM). O código elenca quatro sanções administrativas (multa,
suspensão temporária de atividade, apreensão de minério, bens e equipamentos, e
caducidade), mas a agência estipulará as hipóteses e os critérios de sua
aplicação. Mais uma fragilidade do código, pois a própria lei deveria trazer as
hipóteses, critérios e graduação das penalidades, em especial nos casos de
infrações socioambientais – evitando assim ingerências políticas nos
regulamentos.
O caso
da hidrelétrica de Belo Monte é um exemplo. Por não executar as condicionantes
socioambientais exigidas pelo Ibama antes da Licença Prévia, fato denunciado
pelo Ministério Público Federal, o consórcio teve suas atividades suspensas por
decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em outubro de 2013. Mas o
presidente do Tribunal, apoiado em lei editada em 1964 e reeditada em 1992, que
suspende liminares contra o poder público se essas representarem “grave lesão à
ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas”, suspendeu a liminar. E assim a Belo Monte pôde
retomar suas atividades que, entre outros efeitos, causam graves lesões à
ordem, à saúde, à segurança e à economia pública dos povos indígenas e
ribeirinhos da região.
Assim
como para Belo Monte, a lei das liminares também beneficiaria as mineradoras ao
longo de toda atividade. Portanto, além da fixação dos critérios na própria
lei, o Congresso deveria se empenhar para revogar a lei de 1964, criada para
garantir, sem maiores considerações socioambientais, a continuidade de obras
faraônicas como Transamazônica e Itaipu – num tempo em que a discussão do
governo com a sociedade organizada e com as comunidades atingidas era
praticamente nulo.
“Monopolização” da pesquisa
Ao
contrário do código atual, o projeto reúne num único título a pesquisa e a
lavra. Hoje é possível uma pessoa ou escritório de geologia fazer a pesquisa e,
comprovado o valor econômico da área, negociar a concessão com uma mineradora.
Ao vincular pesquisa e lavra num único título, concedido agora apenas a
empresas capazes e habilitadas à lavra, diz o governo pretender, além de
estimular a concorrência no setor, eliminar a “especulação” permitida pelo
modelo atual.
Os bônus
de assinatura e de descoberta, e o programa exploratório mínimo (que exigirá
investimentos das empresas) são fortes instrumentos dessa nova política, pois,
já eliminada a possibilidade de pesquisa por pessoas físicas, impossibilitariam
a participação de pequenas empresas como outorgadas. Isso só não atinge a lavra
garimpeira, regulada por lei específica. O projeto mantém a exigência de taxa
anual por ocupação e retenção da área, de modo progressivo em função do porte
da mineradora.
A
consequência desse novo regime de pesquisa é nociva às pequenas empresas do
setor, pois retira a figura da prioridade presente
no código atual. Hoje, uma pessoa ou pequena empresa pode pesquisar e descobrir
uma área com grande potencial econômico e obter a prioridade. Pelo novo código,
porém, se a área estiver fora daquelas consideradas estratégicas pelo governo
(para futuras licitações), deverá informar suas características e localização
exata, e não terá direito à prioridade pela descoberta. Ao contrário, haverá
uma chamada pública, e se a área for mesmo de grande potencial econômico
atrairá o interesse das grandes empresas, que fatalmente a abocanharão.
As
pesquisas ficam assim prejudicadas, e muitas das pequenas empresas do setor
estarão sendo jogadas para fora do mercado em favor das grandes. Isso abre a
possibilidade de uma concentração, com as grandes empresas absorvendo as
estruturas e mão de obra das pequenas. Vale lembrar que, nesse trabalho pesado
e inóspito de pesquisa, as chamadas junior
companies são reconhecidas por descobrir a maior parte de
depósitos minerais com potencial econômico. Em dez anos, foram localizadas por
elas mais de 2,8 milhões de toneladas de níquel, mais de 800 mil toneladas de
cobre, mais de 650 milhões de toneladas de ferro e mais de mil toneladas de
ouro, cujo valor total in
situ soma mais de 164 bilhões de dólares – conforme Nota de Repúdio e Resposta ao Ministro
Edison Lobão, assinada
por entidades do setor.
Não se
deve perder de vista, porém, que pelos tipos de concorrência o modelo proposto
valoriza mais os depósitos minerais, os quais são, em última instância, riqueza
da União. Talvez aqui a saída fosse criar um bônus de descoberta que
revertesse, inteira ou parcialmente, ao descobridor do depósito. Acontece que a
figura do bônus está
presente apenas no modelo de licitação. Tal solução estimularia a pesquisa em
áreas não cobertas pela Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM), que
passará a ter papel central no assunto.
A CPRM,
vinculada ao Ministério de Minas e Energia, será encarregada de desenvolver
estudos e pesquisas científicas e tecnológicas para o aproveitamento dos
recursos minerais. O governo federal destaca o papel da CPRM como fundamental
para a realização da pesquisa de minérios, bem como para a implantação e gestão
de informações sobre geologia, recursos minerais continentais e marinhos, entre
outros. Suas informações geológicas sobre o potencial exploratório do
território ajudarão a orientar as licitações quanto à escolha dos blocos a
serem disponibilizados para atividades de pesquisa e lavra.
Em
outras palavras: o governo promete investir em pesquisa para aumentar as
possibilidades de exploração da geodiversidade do
país, e dessa forma aumentar a participação do setor no PIB nacional, hoje em
torno de 4%.
Nova
política de mineração
O PL
cria o Conselho Nacional de Política Mineral (CNPM), órgão vinculado à
presidência da República e presidido pelo ministro de Minas e Energias –
responsável por propor diretrizes para o planejamento da política mineral. E
também a Agência Nacional de Mineração (ANM), autarquia vinculada ao
Ministério, com autonomia financeira e administrativa. A ela caberá regular,
fiscalizar e promover a gestão de informações do setor. Será responsável pela
implementação da política nacional para a atividade minerária, em apoio técnico
ao CNPM.
A ANM
será sucessora do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) , criado em
1934. Uma das razões para a substituição do órgão atual é a precariedade da
fiscalização e o acúmulo de sanções administrativas aguardando solução. A
“espera” pode chegar a vinte anos. Na verdade, o que as empresas aguardam é que
sejam abonadas suas multas e penalidades. A lógica, aqui, é a mesma aplicada
aos infratores ambientais com a aprovação, em 2012, do novo Código Florestal:
anistia das dívidas por desmatamento ilegal, gerando o conhecido clima de
impunidade. Assim como neste pesou a atuação da bancada ruralista no Congresso,
agora é a vez da frente parlamentar da mineração, financiada em suas campanhas
eleitorais por empresas do setor como Vale, Usiminas etc.
Mais
recursos para a União
Outra
mudança, curiosamente reclamada sem ênfase pelas empresas, é o aumento da
Compensação Financeira pela Exploração Mineral (CFEM). Atualmente de 0,2% a 3%,
chegará até a 4%, a partir do teor do minério e de suas respectivas cadeias
produtivas. O minério de ferro, por exemplo, passará de 2% para 3%. As
alíquotas de cada mineral serão definidas por decreto da presidência. Com a
mudança, o governo espera elevar a arrecadação atual, de 1,8 bilhão de reais,
para 3 bilhões de reais.
Outra
mudança significativa, que deverá impactar o montante da Compensação, é a da
base de cálculo da CFEM. Esta deixará de ser a receita líquida das empresas
para ser a receita bruta de vendas, deduzidos os tributos efetivamente pagos
(ICMS, PIS, Cofins). Já a distribuição da CFEM permanecerá a mesma: 12% para a
União, 23% para os Estados e 65% para os municípios, no caso de a produção
ocorrer em seus territórios. Esse pacote de bondades para os municípios é fruto
do reconhecimento dos violentos impactos socioambientais causados pela
atividade mineradora. Em princípio, as receitas deverão ser aplicadas em
projetos que beneficiem as comunidades locais atingidas pelos empreendimentos,
fiscalizadas pelos órgãos federais, comunidades atingidas e eleitores em geral.
Neodesenvolvimentismo
e velhos danos socioambientais
Tudo
indica que, com esse marco regulatório, o governo quer provocar um novo surto
desenvolvimentista no setor, sem considerar questões socioambientais. A elas
são feitas apenas referências de ordem genérica, que na “hora H” poderão sofrer
o enquadramento coercitivo do Estado, na tradição do relevante interesse público da União,
ou, nos termos do novo código: “o aproveitamento dos recursos minerais é
atividade de utilidade pública e de interesse nacional”. Mas não reserva nenhum
artigo aos povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos, que fatalmente
continuarão sendo atingidos. Nenhum dispositivo concreto sobre impacto
ambiental, nenhuma palavra sobre biodiversidade. É a velha política, nociva e
leniente, no novo código.
Na
prática, a CFEM é uma transferência de responsabilidades. Mas contratos atuais,
tal qual o da Belo Monte, já trazem como condicionante ambiental o investimento
em postos de saúde, escolas, vias públicas etc. Uma ação ajuizada contra o
não-cumprimento de condicionantes socioambientas para obter as licenças,
situação comum na exploração de recursos minerais e hídricos, leva em geral
anos para chegar a um termo, e, quando isso ocorre, não há como voltar ao
estado anterior, pois o fato está consumado. Restará pleitear uma indenização
financeira, cujo valor será consideravelmente reduzido por ingerências
políticas, quando não anulado pelo perdão do Estado. É o último confisco do grande
capital praticado contra as riquezas brasileiras, aqui incluídos os povos
indígenas, quilombolas, ribeirinhos e todo o sacrifício de fauna e flora
realizado em nome do lucro da iniciativa privada.
Embora o
projeto de lei faça oito referências genéricas à cultura ambientalista, em
expressões como forma sustentável, recuperação ambiental e recuperação dos
danos ambientais causados pela atividade de mineração, ele, juntamente com o
Código Florestal de 2012, representa na verdade uma guinada conservadora na
política ambiental brasileira, em favor de um surrado modelo exportador
de commodities.
Apesar
da grande importância do setor na economia do país, isso não exime o poder
público de sua responsabilidade de consignar os instrumentos jurídicos,
políticos, materiais e humanos para, na implantação de sua nova política
mineral, assegurar de maneira eficaz os direitos dos povos e da natureza.
Ligações
Perigosas
Na
elaboração do projeto do novo código, é possível constatar as distorções
políticas do nosso modelo de representação parlamentar, como fica evidente
na pesquisa de Clarissa Reis Oliveira, “Quem
é quem nas discussões do novo código da mineração”, produzida pelo Instituto
Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase).
O
deputado federal do PT mineiro Gabriel Guimarães, por exemplo, – titular na
Comissão de Minas e Energia, na Subcomissão Permanente sobre o Marco
Regulatório de Mineração do Brasil e presidente da Comissão Especial que
analisa a proposta do novo código – foi eleito em 2010 com financiamento da
Gerdau Comercial de Aços S/A, Cia. Brasileira de Metalurgia e Mineração e Rima
Industrial S/A, entre outras, numa campanha nada modesta de 3 milhões de reais.
Também o relator do projeto, deputado federal Leonardo Quintão (PMDB-MG), foi
financiado, no mesmo ano, por empresas como Usiminas, Gerdau e Acelor Mittal,
com quase 20% da receita declarada de 2 milhões de reais provenientes do setor
de mineração.
Esse é o
grau de promiscuidade existente entre as empresas privadas e aqueles que
deveriam representar a população. (Conforta lembrar campanhas modestas, de cem
a duzentos mil reais, financiadas em grande parte por doadores individuais,
além do próprio candidato).
Mais um
dado, no mínimo perturbador. Um dos signatários do projeto enviado ao Congresso
é o ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, cujo filho é proprietário da
mineradora Vale do Sol. O que dizer dele e da frente parlamentar da mineração,
e outras frentes, que não apenas advogam, mas também legislam em causa própria?
(Mais “ligações perigosas” na matéria da Agência Pública.)
A
subordinação dos políticos às corporações parece evidente nos anos de contato
entre equipes do governo e representantes das empresas do setor, em que
diversas sugestões e reparos foram propostos por estes e acatados por aqueles.
As discussões foram feitas nos gabinetes, e em nenhuma etapa entidades civis
foram convidadas a participar. O lacre final do projeto foi votação em regime
de urgência.
Os
vínculos entre a política institucionalizada e as corporações que detêm o poder
de fato alijam as organizações civis do debate e reforçam os métodos
antidemocráticos de parte considerável da sociedade brasileira. É o que
chamamos de o poder na sombra.
Publicado
originalmente em: Outras Palavras
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